Ela tinha essa complexidade, essa chama que ia da ponta do pé até o àpice da sua alma. Ela gostava de dança e nos seus movimentos de uma perfeição notável, leves, trabalhados, quase que como uma pena levada pelo vento ela encantava os olhos daqueles que à punham os olhos. Nos seu pés calejados via-se a paixão e dedicação que depositava na dança. Seu único e imensurável motivo de viver. Era capaz de ultrapassar seus limites físicos e psiccos para alcançar o que mais queria, a perfeição. Na ponta do dedo do pé, com as pernas cruzadas, joelhos esticados, os braços batendo simuladamente iguais o de uma ave e o tronco curvado em reverência, ela se despedia. Não da multidão que a via e apreciava lá de baixo, mas sim dela mesma. A vulnerabilidade do seu ser íntegro não distinguiu realidade de personagem. Ela amava demais o "papel" para distinguir. O único obstáculo em seu caminho era ela mesma.
Um viveria o outro morreria.
De um lado o cisne branco lindo, tímido, frágil, transbordando paz, bondade, serenidade, controle, técnica. Do outro lado o cisne negro. Esse, por sua vez, sombrio, frio, amedrontador, tentando extrair dela toda uma sensualidade maligna, coisa que ela não tinha, pois era clara a sua afinidade com o cisne branco. Ex o que a desafiou. Ela tinha que brilhar dançando o cisne negro. Entre uma tentativa e outra fracassada de incorporar o cisne negro ela ouvia repetidamente uma voz real que dizia: sinta, seduza-nos,paixão, ataque, ataque, vamos lá. Mas o cisne negro ainda estava distante, até perceber que precisava SER o cisne negro e não apenas uma descartável, mas esforçada, representação dele. Foi onde a sua obsessão pelo cisne negro enganou a realidade ao ponto dela não distinguir o que era real e o que não era real. Achou o negro branco quando na verdade o negro só se tornava mais negro e o branco só se tornava mais insensível. Este último, que ela fazia com perfeição, era o seu porto seguro de onde ela tirava sua única certeza e confiança. Mas ela ainda não tinha o que queria. A perfeição completa. A perfeição plena. Ela queria a perfeição de ambos os cisnes.
Certo dia acordou de madrugada transpirando e muito atordoada. Havia sonhado sobre uma garota transformada num cisne, mas seu príncipe se apaixonava pela garota errada e então... Ela se matava. Até que ponto a realidade havia se tornado o seu sonho? Devaneios, alucinações lhe corroíam o cérebro e por um ou alguns momentos pensava ser ele, lindo, vibrante, de olhos vermelhos, esbanjando uma sensualidade caracteristica do personagem. A epiderme e a pele entravam num processo de transição onde pele não era mais pele, era pena. Negra, brilhante, esvoaçante. Ela se transformava lentamente na sua obsessão. Se transformou profundamente na escolha daquele que morreria.
Do alto de onde estava, na ponta do dedo do pé, com as pernas cruzadas, joelhos esticados, os braços batendo simuladamente iguais o de uma ave e o tronco curvado em reverência, acompanhada por aplausos desesperados de satisfação, ela se jogava para um abismo sem volta. Na certeza de que sentiu a plenitude da perfeição. Nada mais importava. No chão rodeada por olhares de desespero, ela pronunciava algumas poucas palavras: eu senti, foi perfeito.
A sua insegurança lhe acompanhou até o final cuja obsessão pelo papel de rainha dos cisnes lhe tornou assustadoramente perfeita.
Quando se toca a perfeição a morte não dói.
Baseado no filme cisne negro de Darren Aronofsky.